domingo, 19 de julho de 2020

O Mito Do Homem Cordial, de Sérgio Buarque de Holanda, ao brasileiro atual

Material sugerido para 2º Ano - Ensino Médio

Apartir da década de 1930, diversos intelectuais se debruçaram sobre uma tarefa até então bastante difícil: interpretar o Brasil. Quem é o brasileiro? O que é o Brasil? O que nos faz ser como somos? Essas eram perguntas que rondavam as mentes dos pensadores da época.

Na maior parte do século XIX, as explicações acerca da brasilidade estavam calcadas na questão racial; a noção de inferioridade do brasileiro perante a Europa imperava. O brasileiro, naquele contexto, era visto como exótico, posto que analisado à luz do Romantismo. A miscigenação era vista como um defeito do nosso povo.Tudo isso começa a ser questionado com Gilberto Freyre (Casa Grande & Senzala, 1933), Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil, 1936) e Caio Prado Júnior (Formação do Brasil Contemporâneo, 1942), os mais destacados entre os estudiosos que formaram parte do que hoje chamamos de “geração de 1930”.

Para entendermos o caldeirão fervilhante da época, precisamos lembrar, por exemplo, que um dos marcos desse movimento foi a Semana de Arte Moderna. Ela simboliza o início do Modernismo no pensamento e nas manifestações artísticas e intelectuais brasileiras — um período de preocupação social e política, com forte apelo regionalista.

Repensar o Brasil e criar novas interpretações foram as motivações de literatos e artistas daquela época, tais como os já citados sociólogos, o poeta Manuel Bandeira e a artista plástica Tarsila do Amaral.

Neste contexto, Sérgio Buarque de Holanda com seu lendário livro Raízes do Brasil (1936) passou a ser considerado um dos “inventores do Brasil”.

“O jovem leitor de hoje não poderá talvez compreender, sobretudo em face dos rumos tomados posteriormente por seu autor, a força revolucionária, o impacto libertador que teve este grande livro. Inclusive pelo volume de informação, resultante da técnica expositiva, a cujo bombardeio as noções iam brotando como numa improvisação de talento, que coordenava os dados conforme pontos de vista totalmente novos no Brasil de então”, escreveu Antonio Candido em 1967.

O Homem Cordial

Em Raízes do Brasil, Buarque de Holanda lançou um conceito que se tornaria central na história do pensamento sociológico brasileiro: o ‘Homem Cordial’ (cap. 5).

Em linhas gerais, o homem cordial seria o retrato mais fiel do brasileiro. Ele seria de origem patriarcal (o pai como detentor de direito de vida e morte sobre todos), de herança rural; um homem dominado pelo coração, ou seja, um homem muito afável por um lado, mas, por outro, também muito impulsivo e por vezes até violento. Nesta visão, a rapidez com que o brasileiro passaria do caráter amável para a hostilidade seria uma das fortes características do nosso povo.

Na interpretação de Antonio Candido, “o homem cordial não pressupõe bondade, mas somente o predomínio dos comportamentos de aparência afetiva, inclusive suas manifestações externas, não necessariamente sinceras nem profundas, que se opõem aos ritualismos da polidez. O homem cordial é visceralmente inadequado às relações impessoais de decorrem da posição e da função do indivíduo, e não da sua marca pessoal e familiar, das afinidades nascidas na intimidade dos grupos primários”.

A não distinção entre o público e o privado também seria uma característica forte do Homem Cordial. As relações — de sociabilidade apenas aparente —, sejam elas de vizinhança ou de trabalho, não considerariam fronteiras entre o seio familiar e a rua.

A exaltação dos valores cordiais e das formas concretas e sensíveis da religião, que no catolicismo tridentino parecem representar uma exigência do esforço de reconquista espiritual e da propaganda da fé perante a ofensiva da reforma, encontraram entre nós um terreno de eleição e acomodaram-se bem a outros aspectos típicos de nosso comportamento social. Em particular nossa aversão ao ritualismo é explicável, até certo ponto, nesta “terra remissa e algo melancólica”, de que falavam os primeiros observadores europeus (Buarque de Holanda, 1936; pág. 182).

Ao publicar a obra, Sérgio Buarque de Holanda pensava o passado brasileiro, a então contemporaneidade e também tinha a ambição de projetar o futuro. Ele acreditava que com o processo de urbanização, o Homem Cordial estaria fadado a desaparecer. A radicalização da democracia e a inclusão social deveriam, de acordo com o pensador, ser os grandes pilares para o futuro da nação.

Não é exagero dizer, portanto, que o desaparecimento do Homem Cordial era um dos desejos de Sérgio Buarque de Holanda. Somente com isso, o país passaria do domínio do coração para a razão, lançando as bases para o desenvolvimento.

Jessé Souza e suas críticas ao ‘homem cordial’ de Sérgio Buarque de Holanda

Como todo pensador de profundidade e grande destaque, Sérgio Buarque de Holanda não é unanimidade entre os sociólogos — sobretudo os mais contemporâneos, que analisam e criticam a sociedade atual e as interpretações do passado que ainda moldam a narrativa social.

Um de seus maiores críticos atuais é Jessé Souza, que em diversos livros, com especial destaque para A Tolice da Inteligência Brasileira (2015), o acusa de ter mistificado a forma com que o brasileiro se vê e se projeta para o mundo.

Mais do que isso. Para Souza, a obra de Buarque de Holanda serve como uma ideia-força a ser usada pela elite econômica atual para legitimar desigualdades, uma vez que a emotividade do brasileiro o faz dividir o mundo entre amigos, os que merecem todos os favores, e inimigos, os que só merecem a letra dura da Lei. Também a relação do indivíduo com o Estado, visto como portador de todos as degenerações sociais, para Souza é deturpada a partir do pensamento de Buarque de Holanda.

Qual é a ideia-força que domina a vida política brasileira contemporânea? Minha tese é a de que essa ideia-força é uma espécie muito peculiar de percepção da relação entre mercado, estado e sociedade, onde o Estado é visto, a priori, como incompetente e inconfiável e o mercado como local da racionalidade e da virtude. O grande sistematizador dessa ideia foi precisamente Sérigo Buarque de Holanda. Buarque toma de Gilberto Freyre a ideia de que o Brasil produziu uma “civilização singular” e “inverte” o diagnóstico positivo de Freyre, defendendo que essa “civilização” e seu “tipo humano”, o “homem cordial”, são, na verdade, ao contrário de nossa maior virtude, nosso maior problema social e político (Souza, 2015, pág. 32).

Jessé Souza questiona a falta de crítica da academia e até dos partidos políticos, da esquerda à direita, diante das ideias de Sérgio Buarque de Holanda. Para ele, o pensador é tido como uma “vaca sagrada”, sobre a qual não se deve tecer questionamentos.

Reconhece, ainda que com muitas ressalvas, no entanto, que tanto Buarque de Holanda como seu predecessor, Gilberto Freyre, ajudaram a criar um “mito nacional”.

Esse “mito nacional” possibilita que o brasileiro, ainda que ambiguamente, se orgulhe do Brasil, o que antes era impossível. Seu objetivo é, portanto, “pragmático”: a produção da solidariedade nacional (Souza, 2015, págs. 42–43).

O problema, segundo Souza, estaria no fato de Buarque de Holanda e Freyre não terem concentrado suas análises dos padrões culturais nacionais na questão da escravidão. Tanto Raízes do Brasil quanto Casa Grande & Senzala teriam atenuado o tema da escravidão (abolida em 1888). E “coube a Sérgio Buarque sistematizar todo o estoque de ideias e de representações que daria substância e poder de convencimento ao culturalismo liberal e conservador no Brasil” (Souza, 2015; pág. 43).

Cícero Nogueira


 


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