Material sugerido para 2º Ano - Ensino Médio
Apartir da década de 1930, diversos intelectuais se
debruçaram sobre uma tarefa até então bastante difícil: interpretar o Brasil.
Quem é o brasileiro? O que é o Brasil? O que nos faz ser como somos? Essas eram
perguntas que rondavam as mentes dos pensadores da época.
Na
maior parte do século XIX, as explicações acerca da brasilidade estavam
calcadas na questão racial; a noção de inferioridade do brasileiro perante a
Europa imperava. O brasileiro, naquele contexto, era visto como exótico, posto
que analisado à luz do Romantismo. A miscigenação era vista como um defeito do
nosso povo.Tudo
isso começa a ser questionado com Gilberto Freyre (Casa Grande & Senzala,
1933), Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil, 1936) e Caio Prado Júnior
(Formação do Brasil Contemporâneo, 1942), os mais destacados entre os
estudiosos que formaram parte do que hoje chamamos de “geração de 1930”.
Para
entendermos o caldeirão fervilhante da época, precisamos lembrar, por exemplo,
que um dos marcos desse movimento foi a Semana de Arte Moderna. Ela simboliza o
início do Modernismo no pensamento e nas manifestações artísticas e
intelectuais brasileiras — um período de preocupação social e política, com
forte apelo regionalista.
Repensar
o Brasil e criar novas interpretações foram as motivações de literatos e
artistas daquela época, tais como os já citados sociólogos, o poeta Manuel
Bandeira e a artista plástica Tarsila do Amaral.
Neste
contexto, Sérgio Buarque de Holanda com seu lendário livro Raízes do Brasil
(1936) passou a ser considerado um dos “inventores do Brasil”.
“O
jovem leitor de hoje não poderá talvez compreender, sobretudo em face dos rumos
tomados posteriormente por seu autor, a força revolucionária, o impacto
libertador que teve este grande livro. Inclusive pelo volume de informação,
resultante da técnica expositiva, a cujo bombardeio as noções iam brotando como
numa improvisação de talento, que coordenava os dados conforme pontos de vista
totalmente novos no Brasil de então”, escreveu Antonio Candido em 1967.
O Homem Cordial
Em
Raízes do Brasil, Buarque de Holanda lançou um conceito que se tornaria central
na história do pensamento sociológico brasileiro: o ‘Homem Cordial’ (cap. 5).
Em
linhas gerais, o homem cordial seria o retrato mais fiel do brasileiro. Ele
seria de origem patriarcal (o pai como detentor de direito de vida e morte
sobre todos), de herança rural; um homem dominado pelo coração, ou seja, um
homem muito afável por um lado, mas, por outro, também muito impulsivo e por
vezes até violento. Nesta visão, a rapidez com que o brasileiro passaria do
caráter amável para a hostilidade seria uma das fortes características do nosso
povo.
Na
interpretação de Antonio Candido, “o homem cordial não pressupõe bondade, mas
somente o predomínio dos comportamentos de aparência afetiva, inclusive suas
manifestações externas, não necessariamente sinceras nem profundas, que se
opõem aos ritualismos da polidez. O homem cordial é visceralmente inadequado às
relações impessoais de decorrem da posição e da função do indivíduo, e não da sua
marca pessoal e familiar, das afinidades nascidas na intimidade dos grupos
primários”.
A
não distinção entre o público e o privado também seria uma característica forte
do Homem Cordial. As relações — de sociabilidade apenas aparente —, sejam elas
de vizinhança ou de trabalho, não considerariam fronteiras entre o seio
familiar e a rua.
A
exaltação dos valores cordiais e das formas concretas e sensíveis da religião,
que no catolicismo tridentino parecem representar uma exigência do esforço de
reconquista espiritual e da propaganda da fé perante a ofensiva da reforma,
encontraram entre nós um terreno de eleição e acomodaram-se bem a outros
aspectos típicos de nosso comportamento social. Em particular nossa aversão ao
ritualismo é explicável, até certo ponto, nesta “terra remissa e algo
melancólica”, de que falavam os primeiros observadores europeus (Buarque de
Holanda, 1936; pág. 182).
Ao
publicar a obra, Sérgio Buarque de Holanda pensava o passado brasileiro, a
então contemporaneidade e também tinha a ambição de projetar o futuro. Ele
acreditava que com o processo de urbanização, o Homem Cordial estaria fadado a
desaparecer. A radicalização da democracia e a inclusão social deveriam, de
acordo com o pensador, ser os grandes pilares para o futuro da nação.
Não
é exagero dizer, portanto, que o desaparecimento do Homem Cordial era um dos
desejos de Sérgio Buarque de Holanda. Somente com isso, o país passaria do
domínio do coração para a razão, lançando as bases para o desenvolvimento.
Jessé Souza e suas críticas ao ‘homem
cordial’ de Sérgio Buarque de Holanda
Como
todo pensador de profundidade e grande destaque, Sérgio Buarque de Holanda não
é unanimidade entre os sociólogos — sobretudo os mais contemporâneos, que
analisam e criticam a sociedade atual e as interpretações do passado que ainda
moldam a narrativa social.
Um
de seus maiores críticos atuais é Jessé Souza, que em diversos livros, com
especial destaque para A Tolice da
Inteligência Brasileira (2015), o acusa de ter mistificado a forma com
que o brasileiro se vê e se projeta para o mundo.
Mais
do que isso. Para Souza, a obra de Buarque de Holanda serve como uma ideia-força
a ser usada pela elite econômica atual para legitimar desigualdades, uma vez
que a emotividade do brasileiro o faz dividir o mundo entre amigos, os que
merecem todos os favores, e inimigos, os que só merecem a letra dura da Lei.
Também a relação do indivíduo com o Estado, visto como portador de todos as
degenerações sociais, para Souza é deturpada a partir do pensamento de Buarque
de Holanda.
Qual é a
ideia-força que domina a vida política brasileira contemporânea? Minha tese é a
de que essa ideia-força é uma espécie muito peculiar de percepção da relação
entre mercado, estado e sociedade, onde o Estado é visto, a priori, como
incompetente e inconfiável e o mercado como local da racionalidade e da
virtude. O grande sistematizador dessa ideia foi precisamente Sérigo Buarque de
Holanda. Buarque toma de Gilberto Freyre a ideia de que o Brasil produziu uma
“civilização singular” e “inverte” o diagnóstico positivo de Freyre, defendendo
que essa “civilização” e seu “tipo humano”, o “homem cordial”, são, na verdade,
ao contrário de nossa maior virtude, nosso maior problema social e político
(Souza, 2015, pág. 32).
Jessé
Souza questiona a falta de crítica da academia e até dos partidos políticos, da
esquerda à direita, diante das ideias de Sérgio Buarque de Holanda. Para ele, o
pensador é tido como uma “vaca sagrada”, sobre a qual não se deve tecer
questionamentos.
Reconhece,
ainda que com muitas ressalvas, no entanto, que tanto Buarque de Holanda como
seu predecessor, Gilberto Freyre, ajudaram a criar um “mito nacional”.
Esse “mito
nacional” possibilita que o brasileiro, ainda que ambiguamente, se orgulhe do
Brasil, o que antes era impossível. Seu objetivo é, portanto, “pragmático”: a
produção da solidariedade nacional (Souza, 2015, págs. 42–43).
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